Crónica de uma Saudade Incómoda: Sobre o Príncipe e a Barbárie que se Lhe Seguiu

Da janela, a cidade não dá tréguas. O mar de concreto e vidro pulsa com uma energia que beira a brutalidade, uma sinfonia de motores e ambições que não pede licença. É impossível, imerso nesta torrente de modernidade, não sentir a vertigem do tempo e não ser assaltado por uma memória quase subversiva: a memória de um Brasil que, por um breve instante, pareceu aspirar à calma. Refiro-me, com a ironia que a Faria Lima ensina, aos tempos em que o país era governado por um príncipe. Não de coroa, mas de cátedra: o nosso Fernando Henrique Cardoso.

Que saudade incómoda é esta que nos assalta entre uma reunião e outra, no meio do trânsito infernal da Marginal? Não é a nostalgia de um paraíso, pois a era FHC teve suas febres de juros altos e suas crises de desemprego. A saudade que hoje corrói a alma paulistana é a de um tempo que ousamos, em retrospecto, chamar de "simples".

E onde estava essa simplicidade? Estava na monotonia bendita de um governo que falava a prosa da responsabilidade. O debate público, hoje um circo de anátemas e insultos, era então uma conversa de adultos, por vezes terrivelmente enfadonha, sobre bandas cambiais e metas de inflação. O adversário não era um inimigo a ser fuzilado, mas um cavalheiro com outras ideias sobre como domar o dragão da dívida pública. O príncipe sociólogo, com seu intelecto professoral, presidia a um tempo em que a técnica se sobrepunha ao grito, e a previsibilidade, ainda que imperfeita, permitia a esta cidade fazer o que faz de melhor: trabalhar e construir.

Era um tempo Hayekiano em sua aspiração: buscava-se estabelecer regras do jogo para que a ordem espontânea da sociedade e do mercado pudesse florescer sem os sobressaltos do arbítrio de Brasília. E floresceu.

Depois dele, o palco foi invadido pelos messias de pés de barro. A prosa foi esmagada pela poesia grotesca dos salvadores da pátria. A planilha foi queimada na fogueira das paixões tribais. A guerra santa ideológica, antes confinada aos diretórios académicos, transbordou para os jantares de família, para os grupos de WhatsApp, envenenando o ar desta cidade que, por vocação, sempre preferiu o pragmatismo do negócio à histeria da política.

Eis a natureza da nossa saudade paulistana. É a falta que faz um tempo em que a energia desta metrópole não era perpetuamente sabotada pela loucura vinda do Planalto Central. É a nostalgia de um Brasil em que era possível planear o próximo ano sem ter de consultar primeiro os horóscopos de Brasília. A saudade de FHC é o lamento por um país que, por um momento, pareceu interessado em ser sério.

A maior prova da nossa decadência é que, ao olharmos para essa modesta e imperfeita normalidade, sentimos o pungente e quase insuportável desejo de regressar. E isso, mais do que qualquer índice económico, revela a profundidade da nossa doença atual.

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