Crónica do Leviatã de Toga: A Lei dos Homens e a Ordem das Coisas
São Paulo, nesta tarde cinzenta, não convida à melancolia, mas à vertigem. O pulsar incessante da metrópole, esta selva de pedra erigida não por um único arquiteto, mas pela ambição e pelo suor de milhões, é a mais perfeita metáfora da ordem espontânea. Nenhuma mente central a planeou na sua totalidade, e no entanto, ela funciona. E é com o ruído desta imensa e complexa máquina humana como pano de fundo que medito sobre a frágil ordem da nossa República.
Pois esta ordem, que como a cidade deveria ser o produto da interação de cidadãos livres sob o império de leis abstratas, encontra-se sob um cerco formidável. Chegam do Norte, como um vento pestilento, as ideias de Césares de casino, de demagogos que prometem restaurar uma grandeza fictícia através do puro exercício da vontade. Os seus acólitos locais, com a mesma falta de cerimónia, pretendem substituir a ordem evoluída da lei pela ordem fabricada do seu líder. É a arrogância fatal do construtivismo: a crença de que a vontade de um homem pode sobrepor-se à sabedoria dispersa de uma civilização.
Para conter tal assalto, a nossa derradeira muralha deveria ser o primado da lei — o Rule of Law de que falava Hayek. Uma lei que fosse como o farol de um porto: fixa, impessoal, servindo a todos os navios, sem perguntar a sua ideologia ou o seu destino. Mas o que temos nós? Uma Magistratura que, há muito, abandonou o seu posto de guardiã do farol para se tornar ela própria um navio errante.
Os nossos juízes, entrincheirados em seus gabinetes, com vencimentos que ofendem a lógica do mercado e a decência do trabalho, não mais se contentam em aplicar a lei. Julgando-se detentores de um conhecimento superior, puseram-se a criar a lei, a ditar resultados, a engenhar a sociedade a partir das suas poltronas. Cada sentença aleatória, cada decisão que favorece um grupo em detrimento da regra geral, é um tijolo a mais no caminho da servidão. Transformaram a Justiça, que deveria ser um conjunto de regras do jogo, num jogo de cartas marcadas onde o croupier muda as regras a seu bel-prazer.
E aqui, nesta tragédia, emerge a figura mais Hayekiana e paradoxal de todas: Alexandre de Moraes.
Este homem, um produto exemplar da casta judicial que tanto criticamos, tornou-se o principal obstáculo à tirania populista. Mas como? Não restaurando o império da lei impessoal, mas, ao contrário, usando o poder discricionário e a vontade pessoal com uma força que os seus adversários só podem invejar. Ele combate o construtivismo arbitrário da extrema-direita com o construtivismo arbitrário da sua própria toga.
É um espetáculo fascinante e aterrador. Para salvar a ordem espontânea da democracia liberal, ele recorre às ferramentas da ordem construída, do decreto, da vontade que se sobrepõe à norma. É a encarnação do dilema Hayekiano: um homem que usa o poder centralizado para combater os que desejam tomar esse mesmo poder para si. É um veneno a ser usado como antídoto para uma peçonha mais letal.
Podemos sentir um alívio cínico ao ver que a força momentaneamente barrou o caminho da selvageria. Mas que não nos enganemos. A cura tem a mesma natureza da doença. Cada ato de poder discricionário, mesmo que bem-intencionado, erode mais um pouco a fundação da lei sobre a qual a verdadeira liberdade repousa. E uma nação que precisa de um homem, e não de leis, para a salvar, já se encontra perigosamente longe do seu porto seguro.
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