Pequeno Guia de Campo para a Tribo do Colete: Uma Etnografia Afetuosa da Faria Lima
Desde que fiz desta metrópole o meu observatório, dedico algumas tardes a um passatempo que se revelou mais fascinante do que a leitura de qualquer romance: a etnografia. E a tribo mais curiosa, com os rituais mais peculiares e a plumagem mais distinta, é, sem dúvida, a que habita o ecossistema da Avenida Faria Lima.
O meu estudo de campo começa pela plumagem. O macho alfa (e a fêmea dominante) desta espécie é facilmente identificável por um curioso colete acolchoado, usualmente de um azul sóbrio. Qual o mistério desta peça que aquece o tronco, mas deixa os braços expostos a uma imaginária brisa polar que sopra pelos corredores do Pátio Malzoni? É um uniforme, um sinal de pertença, um código que diz ao mundo: "Eu não sinto frio nos membros superiores, pois a minha circulação é otimizada para o lucro". A sua montada preferida, o patinete elétrico, serve para cruzar o seu território com a urgência de quem vai fechar um negócio que mudará o destino do hemisfério.
O seu dialeto é um prodígio de bilinguismo. É um português de base, salpicado abundantemente de termos de um inglês apressado, como se a própria língua de Camões fosse lenta demais para a velocidade das suas transações. Ninguém marca um café; marca-se um "quick sync". Nada é para ontem; é "ASAP". Um problema não é um problema; é um "challenge". E ao fim de uma apresentação, nunca se pede uma opinião, mas sim um "feedback". É um código que lhes poupa preciosos segundos e que, suspeito, serve para manter os não-iniciados à distância.
Os seus rituais de caça e alimentação são igualmente regrados. A caça (de clientes e de negócios) ocorre em escritórios de vidro com vistas panorâmicas. A alimentação, por sua vez, dá-se em restaurantes onde a salada vem sempre num pote e o café tem um nome italiano complicado e um preço que justificaria a compra de um cafezal inteiro. Nestes locais, fala-se de valuations e de maratonas com a mesma gravidade, pois parece haver uma crença tribal de que a robustez do PIB depende diretamente da performance do indivíduo na próxima corrida de rua.
Observo-os com um sorriso, sem ponta de maldade. Vejo nestes rituais, nesta linguagem e nesta plumagem não a vaidade, mas uma seriedade quase juvenil, uma dedicação monástica ao ofício de fazer a roda do capital girar. São uma tribo de jovens brilhantes e terrivelmente compenetrados que, entre um "call" e uma série de abdominais, estão de facto a construir uma fatia do futuro do país.
A gente só lhes deseja, por vezes, que o fizessem com um bocadinho mais de ironia. Mas talvez a ironia seja um luxo que o PIB brasileiro ainda não nos permite ter. E nisso, há que admitir, eles estão cheios de razão.
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